terça-feira, 23 de abril de 2013

Joseph Anton by Salman Rushdie


Neste dia mundial do livro, nada como celebrar um dos autores vivos que mais terá sofrido no mundo ocidental devido ao acto inconsciente e destemperado de... escrever um livro... Os versículos Satânicos…


Joseph Anton era o nome de código de Salman Rushdie durante o período em que esteve escondido e constitui uma homenagem a dois dos seus escritores favoritos: Joseph Conrad e Anton Chekhov.

Este livro autobiográfico é denso, como o autor, e faz inteiramente jus à sua vivência fora do comum em que suportou andar escondido, de casa em casa, durante mais de 10 anos para escapar à ‘fatwa’ lançada contra ele. Desde 1998 que a pressão abrandou e que ele se movimenta livremente (mudou-se para os Estados Unidos) mas consta que ainda hoje, no dia de S. Valentim, recebe um postal do Irão para lhe lembrar o voto de morte.

Não estranhe o atento leitor da Alice! É, de facto, possível ter uma vida mesmo andando grande parte do tempo escondido. Para além de se ter divorciado de duas mulheres (a última foi trocada pela deslumbrante modelo Padma Lakshmi), nunca deixou de viajar para múltiplas aparições públicas, no início rodeado de grande aparato policial, para o final nem tanto.

Salman Rushdie “despe-se” completamente neste exercício de memórias, apresentando de forma transparente (chegando a ser despudorada) os seus sentimentos, amores, desamores, paixões, ambições, chauvinismos, etc.

A frase inicial primitiva de “Os Filhos da Meia-Noite” fora: “Muito do que importa na nossa vida acontece na nossa ausência”. Não podia ser mais premonitório. A grande decisão da sua vida foi tomada por um senhor chamado Khomeini, no Irão, que precisava de um novo ímpeto político e de um novo estímulo para os seus crentes, desmoralizados após o fim da guerra do Iraque.

Muitos (incluindo a Alice) sempre o consideraram um pouco arrogante. Até o seu olhar parece desdenhar do nosso. Aliás, os seus olhos foram, nas suas próprias palavras, usados como metáforas da sua perversidade, mas acontece que era apenas uma afecção clínica.

Se isso não for suficiente para o tornar mais humano, talvez alguma das suas confissões seja.

Relativamente ao Pai, Anis: “Nos anos que se seguiram (à morte do Pai), Anis aparecia porventura uma vez por mês nos sonhos do filho. Nesses sonhos era invariavelmente meigo, espirituoso, sensato, compreensivo e solidário: o melhor dos pais. Ocorreu-lhe que o relacionamento entre eles após a morte de Aniss era uma grande melhoria em relação ao que se passava quando o pai ainda era vivo.”

Relativamente ao trabalho durante a desesperante reclusão forçada: “Ele conseguiu encontrar um quartinho no andar de cima onde podia fechar a porta e fingir que trabalhava.”

Relativamente à sua insegurança: “Ele sofria de grande cansaço, uma espécie de esgotamento nervoso. Estava novamente a fumar, cinco anos depois de ter deixado o tabaco, irritado consigo mesmo por fazê-lo, dizendo para consigo que não devia deixar que isso continuasse por muito mais tempo, mas mesmo assim fumava”.

O livro tem passagens verdadeiramente sublimes, que encerram pensamentos curiosos sobre o quotidiano:

Sobre a missão do artista: “Não existe ‘vida vulgar’. Ele sempre simpatizara com a ideia dos surrealistas de que a nossa capacidade de achar o mundo extraordinário era embotada pela habituação. Habituámo-nos à maneira como as coisas eram, ao dia a dia da vida, e havia uma espécie de película ou poeira que nos obscurecia a visão e escapava-se-nos a verdadeira e miraculosa natureza da vida na Terra. A missão do artista era retirar essa camada cegante e renovar a nossa capacidade de maravilhamento.”

Sobre derrota e vitória: “A derrota dá-nos mais lições do que a vitória. Os vencedores julgavam-se justificados e validados, tal como as suas visões do mundo, e não aprendiam nada. Os perdedores eram obrigados a reavaliar tudo aquilo que antes pensavam ser verdadeiro e merecedor de combate, e assim dispunham de uma oportunidade para aprender, da maneira mais difícil, as lições profundas que a vida tinha para dar. A primeira coisa que ele aprendeu foi que agora sabia onde ficava o fundo. Quando batíamos no fundo ficávamos a saber a verdadeira profundidade da água em que estávamos. E sabíamos que nunca mais queríamos voltar a estar lá.”

Sobre o casamento: “Os problemas no casamento, escreveu ele mais tarde, são como a água da monção que se acumula num telhado plano. A pessoa não se apercebe de que ela está lá, mas vai exercendo cada vez mais peso, até que um dia, com um grande estrondo, todo o telhado nos cai em cima.”

Não poderiam faltar os pormenores mais humorísticos, como quando ligou para Vaclav Havel e o seu secretário lhe disse: “Terá que esperar algum tempo. O presidente está na casa de banho”. Ou, relacionado com o nosso País, as interacções que teve com o produtor de cinema Paulo Branco, na sequência da sua compra dos direitos cinematográficos de “O Chão que Ela Pisa”:

“Quando mandou o guião a Branco, soube que Raúl Ruiz se recusara a lê-lo. “Nem sequer o lê? Porquê?, perguntou ele a Branco pelo telefone. “Tem de perceber”, respondeu Branco, “que aqui estamos no universo de Raúl Ruiz”. “Ah”, volveu ele, “eu pensava que estávamos no universo do meu romance”. O projecto gorou-se irrecuperavelmente daí a dias”.

A Alice termina com uma passagem que sublima verdadeiramente o que é para ele a literatura:

“A literatura tentava abrir o Universo, aumentar, ainda que ligeiramente, o todo do que era possível os seres humanos percepcionarem, compreenderem, e assim, finalmente, serem. A grande literatura ia até à orla do conhecido e forçava as fronteiras da língua, da forma e das possibilidades, para fazer com que o mundo parecesse maior, mais amplo, do que antes.”

Incrível como este homem tornou o mundo mais amplo, mesmo passando uma parte importante e, em qualquer artista, a mais criativa da sua vida encerrado entre quatro paredes.

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