quarta-feira, 25 de setembro de 2013

O ovo de… Alice


O nosso Governo tem andado com paliativos e medidas temporárias, exame da Troika após exame da Troika, para conseguir os seguintes objectivos prioritários:

(i) Cortar a despesa do Estado;

(ii) Aumentar a competitividade da economia e a sua balança externa;

(iii) Reduzir (ou pelo menos conter) a dívida pública, resolvendo o problema de financiamento da economia.

Corte das prestações sociais, das pensões, quadros de mobilidade, redução da TSU, aumento horário de trabalho, redução dos dias de férias, encerramento de serviços públicos, privatizações, etc. são tudo medidas que se destinam a “atacar” estes problemas.

A uma forte oposição das corporações há muito instaladas em Portugal (disfarçadas de “sociedade civil”), acresce uma improdutiva luta corpo-a-corpo com o Tribunal Constitucional.

Como é que estes problemas se resolveram no passado? Como alertou Vitor Bento em artigo recente no Diário Económico, também houve austeridade e cortes salariais e pensões só que “em vez de transparentemente assumidos, foram feitos subrepticiamente através da inflação, explorando a ilusão monetária dos beneficiários, que, passando a receber realmente menos, foram levados pela aparência de receberem nominalmente mais, sem que ninguém se preocupasse com a sua legalidade”. Não consta que o tribunal constitucional tenha sido chamado a pronunciar-se sobre este ajustamento.

A Alice acrescentaria que as políticas de desvalorização da moeda, ajudaram ao resto, nomeadamente ao reforço da competitividade do País.

Infelizmente, hoje não temos nem política monetária nem cambial.

No entanto, há uma alternativa para deflacionar a economia e os factores de produção através da utilização de um outro mecanismo de “ilusão monetária” que não a inflação.

É simples: passar a pagar ao factor trabalho com dívida pública nacional.

O mecanismo funcionaria da seguinte forma:

- Os funcionários públicos, pensionistas e afins (incluindo funcionários de EP) passariam a receber uma componente do seu salário em obrigações de tesouro (OTs) a 20 anos com um juro simbólico (para não haver grandes discussões, à mesma taxa que a Troika nos cobra, p. ex.);

- Os de salário mais elevado receberiam uma maior componente de dívida (por exemplo 30% do seu salário), enquanto que os de salário mais baixo receberiam uma menor componente (5%) – todos receberiam para que a medida fosse apreendida por todos;

- As empresas privadas também seriam obrigadas a aderir a este esquema (a bem da sua constitucionalidade), sendo que teriam liberdade para fixar as percentagens de salário dos seus trabalhadores que seriam pagos em dívida pública (com tectos máximos iguais aos dos funcionários públicos) – da mesma forma todos receberiam, pelo menos, a percentagem mínima em OTs (os tais 5%);

- Enquanto ao Estado basta emitir dívida, as empresas terão de a comprar no mercado, assegurando, desde logo, liquidez suficiente para todos os que necessitem convertam as suas OTs em dinheiro (um “twist” adicional seria as Empresas poderem pagar os salários com a sua própria dívida, mas levava a considerações muito mais complexas e a equidade não seria garantida da mesma forma…);

- Claro que o truque aqui (a tal “ilusão”) é que uma obrigação deste género deverá cotar em mercado a 30% ou 40% de desconto face ao seu valor nominal (uma obrigação com um cupão de 3,85% com vencimento em 2021 está hoje cotada a 82,24% do seu valor nominal), permitindo ao Estado e às empresas uma verdadeira poupança em termos reais;

- O Estado seria obrigado a amortizar dívida (ou recomprar dívida) num montante equivalente à dívida emitida para pagamento de salários (assegurando que a dívida total não aumentaria);

- A Troika aceitaria que todos os pagamentos em OTs a funcionário públicos, pensionistas e afins não contassem para o deficit (embora, como é óbvio, contem para a dívida).

Este mecanismo permitirá atingir os três objectivos acima definidos:

(i) A despesa do estado reduziria na proporção da componente salarial que seria paga em OTs (em bom rigor, a verdadeira poupança seria a correspondente à desvalorização de mercado da dívida no momento da sua emissão);

(ii) As empresas poupariam na medida em que o custo do trabalho teria uma redução pela arbitragem entre o valor facial das OTs e o seu valor de mercado;

(iii) Resolver-se-ia (pelo menos parcialmente) o problema do financiamento da economia, por alargar substancialmente o número de compradores (ou, mais propriamente, tomadores) de dívida pública.

Note-se que este mecanismo é apenas de transição e de efeito de curto prazo, aliás como seria um surto inflacionista ou uma desvalorização cambial. Os problemas de base teriam de ser resolvidos à mesma (ineficiência do Estado, despesismo, etc.), sob pena de rapidamente estarmos outra vez numa situação insustentável.

Caso tudo corresse bem, num par de anos, o “rating” da república Portuguesa começaria a aumentar e o valor de mercado da dívida recuperaria para valores mais próximos do seu valor facial. Assim, seria reposto o poder de compra dos salários (da função pública e do sector privado) e recuperado o valor “perdido” nos primeiros anos (para aqueles que mantivessem as suas OTs).

Este mecanismo tinha a virtualidade acessória de promover a poupança e uma literacia financeira ímpar (pelo menos todos passariam a acompanhar a evolução das cotações das OTs e deixavam de pensar que dívida pública é o investimento mais seguro do mundo – até alguns banqueiros aprenderiam com esta lição!).

É provável que haja uns acertos a fazer ao modelo (contabilidade nacional e contabilidade pública nunca foram o forte da Alice), mas não será por causa dos contabilistas que não endireitamos o País…

A Alice sabe que a sua proposta é atrevida. Mas também sabe o buraco em que estamos metidos. E para grandes males, nada como grandes remédios…

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